Samuel Mira

Valete

No meio da chuva, foi lá que te vi
Foi lá que te ouvi, foi lá que te vi
No meio da chuva, foi lá que te vi
Foi lá que te ouvi, foi lá que te vi

A chuva em Chelas marcou o dia simbólico
Águas a cair deram um festival sinfónico
Entre o sol e a chuva que faziam o seu imbróglio
Conheci-te melancólico, olhar insólito

Não me calava enquanto tu mal falavas
Eras de muitos olhares e poucas palavras
Preso no silêncio como o poeta na praia
Só te sentias livre entre vinis de Tim Maia

Entre os cantos subtis de Billie Holiday
Entre a matriz do Soul triste de Marvin Gaye
Vi-te a germinar ideias matinais
E a transformá-las em sonho e melodias celestiais

Melodias de representação messiânica
Que levitaram o povo como meditação xamânica
Sinatra, deixavas todos siderados
Quando assinavas o estilo, fazendo ciladas com sílabas

Lembro me quando o teu mundo desfaleceu
Naquela madrugada em que o mano Snake morreu
Nunca foste de exteriorizar o que tens dentro
Nunca foste de divulgar o sofrimento

Tanta gente a querer saber como é que estavas
Tu respondias dizias sempre que estavas bem
Mas eu notava como tu definhavas
E vi crescer essa angústia que te tornava refém

Nos teus olhos vi-te escuro, vi-te amórfico
Vi-te frágil, desalentado, vi-te mórbido
Era a vida levar o teu lado dócil
Hoje eu sei o que é perder alguém tão próximo

Conheço bem esses dias de escuridão
A colisão entre a dor e a solidão
Conheço bem esses dias que o caos convoca
Conheço bem esses dias de Johnny Walker

Vida tornou-se morteira
Mas soubeste fazer da tua musica uma trincheira
Foi dessa dor que saíram as melhores batidas
Dessa dor saíram as rimas mais sofridas

Rimas de paixão e desapego
Rimas de um homem que vive no desassossego
Por isso tantas relações tentadas
Foram tantas mulheres, tantas relações falhadas

Poucas entendem esse espírito heterogéneo
Poucas entendem as inquietações dum génio
Inquietações de um ser minucioso
Minúcia que te deixou com esse estatuto monstruoso

MC’s entre holofotes e damas
Deslumbrados embebedados com 15 minutos de fama
Perdem a resistência quando chegam as barreiras
Não sabem com que valências é que se faz uma carreira

Hoje inflamados como um faraó
Amanha serão sombras, serão cinzas, serão pó
Fornada de Mc’s que hoje vivem por nada
Perdidos deviam estudar, inalar a tua jornada

20 anos de devoção
20 anos de esforço, luta e obstinação
20 anos de fé, resistência e persistência
20 anos de precisão, rigor e excelência

Vê-os fascinados com a execução
Vê-os a contemplar cada instrumental que se desdobra
E a sedução dos versos na tua locução
1000 obrigados irmão por toda a tua obra

No meio da chuva, foi lá que te vi
Foi lá que te ouvi, foi lá que te vi

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