Bochincho

Jayme Caetano Braun

A um bochincho certa feita
Fui chegando por curioso
Que o vicio é que nem sarnoso
Nunca para nem se ajeita
Baile de gente direita
Vi de pronto que não era
Na noite de primavera
Gaguejava a voz de um tango
E eu sou louco por fandango
Que nem pinto por quirera
Atei meu zaino longito
Num galho de guamirim
Desde guri sou assim
Não brinco, nem facilito
Em bruxas não acredito
Pero que las hay, las hay

Sou da costa do Uruguai
Meu velho pago querido
E por andar desprevenido
Há tanto guri sem pai
Num rancho de santa fé
De pau a pique e barreado
Num trancão de convidado
Me entreverei no banzé
Chinaredo a bola pé
O ambiente fumacento

E um candeeiro bem no centro
Num lusco-fusco de aurora
Pra quem chegava de fora
Pouco enxergava ali dentro
Dei de mão numa changaça
Que me cruzou no costado
Já saímos entreverados
Entre a poeira e a fumaça
Oigalê china lindaça
Morena e de toda a crina
Dessas da venta brazina
Com cheiro de lechiguana
Que quando ergue uma pestana
Até a noite se ilumina

Misto de diaba e de santa
Com ares de quem é dona
E um gosto de temporona
Que traz agua na garganta
E eu me grudei na percanta
O mesmo que um carrapato
E o gaiteiro era um mulato
Que até dormindo tocava
E a gaita choramingava
Como um namoro de gato

A gaita velha gemia
As vezes quase parava
De repente se acordava
E num vaneirão se perdia
E eu contra a pele macia
Daquele corpo moreno
Sentia o mundo pequeno
Bombeando o cheiro de enlevo
Dois olhos flores de trevo
Com respingos de sereno
Mais o que é bom se termina
Cumpriu-se o velho ditado
Eu que dançava embalado
Nos braços doces da china

Escutei de relancina
Uma espécie de relincho
Era o dono do bochincho
Meio oitavado num canto
Que me olhava com espanto
Mais sério que um capincho
E foi ele que se veio
Pois era dele a pinguancha
Bufando e abrindo cancha
Como o dono do rodeio
Quis me partir pelo meio

Num talonaço de adaga
Que se me pega me estraga
Chegou a levantar um cisco
Mas não é atoa chomisco
Que sou de são Luiz Gonzaga
Meio na volta do braço
Consegui tirar o talho
Quase que me atrapalho
Por que havia pouco espaço
Mas senti o calor do aço
E o calor do aço arde
Me alevantei sem alarde
Por causa do desaforo
E soltei meu marca touro
Em um medonho buenas tarde

Tenho visto coisa feia
Tenho visto judiaria
Mais ainda hoje me arrepia
Lembrar aquela peleia
Talvez quem ouça não creia
Mais vi brotar no pescoço
Do índio do berro grosso
Como uma cinta vermelha
Que desde o beiço
Até a orelha ficou relampeando o osso

O índio era um índio touro
Mais até touro se ajoelha
Cortado do beiço a orelha
Amontou-se como um couro
E aquilo foi um estouro
Daqueles que dava medo
Espantou-se o chinaredo
E amigos foi uma zuada
Parecia até uma eguada
Disparando num varzedo
Não há quem pinte o retrato
De um bochincho quando estoura

Tinidos de adaga e espora
E gritos de desacato
Berros de quarenta e quatro
De cada canto da sala
E a velha gaita baguala
Num vaneirão pacholento
Fazendo acompanhamento
Num turumbamba de bala
É china que se escabela
Redemoinhando na porta
E xiru da guampa torta

Que vem direito a janela
Gritando de toda a goela
Num berreiro alucinante
Índio que não se garante
Vendo o sangue se apavora
E se manda campo a fora
Levando tudo por diante
Sou crente na divindade
Morro quando D'us quiser
Mas amigos se eu disser
Até periga verdade
Naquela barbaridade
De chinaredo fugindo
De grito e bala zunindo
E o gaiteiro alheio a tudo
Tocava um xote clinudo
Já quase meio dormindo

E a cosa ia indo assim
Balanceei a situação
Já quase sem munição
E todos atirando em mim
Parecia ser o meu fim
Me dei conta de repente
Não vou ficar pra semente
Mais gosto de andar no mundo
Me esperavam na do fundo
Sai pela porta da frente

E dali ganhei o mato
A baixo de tiroteio
Ainda escutava o floreio
Daquela cordeona do mulato
E pra encurtar o relato
Me bandeei pra o outro lado
Cruzei o Uruguai a nado
Que o meu zaino era um capincho
E a história desse bochincho
Faz parte do meu passado

E a china?
Essa pergunta me é feita
A cada vez que declamo
É uma coisa que reclamo
Por que não acho direita
Considero uma desfeita
E compreender não consigo
Eu em um medonho perigo
De uma situação brazina
Todos perguntam da china

E ninguém se importa comigo
E a china eu nunca mais vi
No meu gauderiar andejo
Somente em sonhos a vejo
Em bárbaro frenesi
Talvez ande por ai
No rodeio das alçadas
Ou talvez nas madrugadas
Seja uma estrela xirua
Dessas que se banha nua
No espelho das aguadas

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