Metades

Leonia Oliveira

Metade de mim me odeia,
Metade de mim me adora.
Metade de mim semeia
O que a outra metade devora.
Metade de mim, lua cheia,
Metade de mim, noite afora.
Metade de mim me rodeia,
Metade de mim me põe fora.
Metade de mim, general,
Metade de mim, um xadrez,
Metade de mim me faz o mal
Que a outra metade não fez.
E assim, brigando aos pedaços,
Cada metade por vez,
Rebenta a água o aço,
Sempre será o talvez.
Enquanto cerco metade
A outra metade ordena
Que'u morra de vontade
Desta metade obscena.
Monstro, anjo, crescente,
De volta reina num giro
Diz-se a metade descente
Com seu sussurrar de vampiro.
Metade de mim ganha o jogo,
Metade de mim me tapeia,
Metade de mim quer o novo
Que a outra metade receia.
Metade de mim tem saudades
Do que a outra metade esqueceu.
Metade de mim, pouca idade,
Metade de mim, já viveu.
Metade de mim, liberdade,
Metade de mim, escravidão.
Metade de mim é covarde,
Metade de mim, guardião.
E assim, brigando aos pedaços,
Cada metade por vez,
De cada uma é um braço,
De cada uma é um mês.
Enquanto lutam as metades,
Eu mesma não me oriento,
Às vezes parece que é tarde
E me arrebento por dentro.
Mas mesmo tão divergentes
Sofrem da mesma aflição,
De serem metade de gente,
Pois nunca se dão as mãos.
Metade de mim, contrabando,
Metade de mim, cardeal.
Metade de mim é um bando,
Metade de mim, informal.
Metade de mim, uma princesa,
Metade de mim, meretriz.
Metade de mim me quer presa
Ao que a outra metade não diz.
Sendo disputada no laço
Destas metades tiranas,
Não posso me dar o abraço
Sem que ocorra barganha.
Dado rolando, quando acordo
Penso, qual metade serei?
A metade com que concordo
E qual é esta metade eu não sei.

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